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Isolamento social e a relativização da Súmula 69 do CARF

A mera entrega com atraso da declaração de ajuste representa um prejuízo
 
As circunstâncias excepcionais e as incertezas que vivenciamos nos últimos meses impuseram ao Governo Federal a necessidade de prorrogação do prazo para a entrega das declarações do imposto de renda da pessoa física. Por meio da Instrução Normativa nº 1.934, de 2020 a Receita Federal do Brasil determinou a prorrogação do prazo em caráter excepcional para o dia 30 de junho de 2020. Segundo a RFB, a medida estava justificava pelas dificuldades impostas pelo isolamento social decretado para conter a propagação do coronavírus na tentativa de evitar o colapso do sistema de saúde pública e privada brasileiro.

Por meio dessa medida, conforme divulgação da própria RFB, pretendia-se “resguardar a população ao evitar a aglomeração de contribuintes nas unidades de atendimento da Receita Federal bem como empresas ou instituições financeiras, na busca de informes de rendimentos, e em escritórios de profissionais ou em entidades que prestem auxílio no preenchimento das declarações.”

Parabeniza-se a autoridade fiscal federal pelo comprometimento com as medidas de contenção da doença e de proteção da população. Certamente não seria razoável exigir que os contribuintes fossem obrigados a enviar suas declarações de ajuste, com toda a documentação que isso pressupõe, no meio de uma pandemia global, que recém estava iniciando no brasil.
 
No entanto, desde a publicação da referida Instrução Normativa, a situação sanitária apenas se agravou. O número de mortes e contaminados disparou nas últimas semanas, com a previsão de um milhão de casos confirmados e de cinquenta mil óbitos por Covid-19 a ser alcançado em poucos dias.
 
As incertezas permanecem na maioria dos estados, com medidas de variam do lockdown, passando pelo isolamento, chegando ao distanciamento controlado. Algumas cidades mantêm os estabelecimentos comerciais fechados, como medida de controle da propagação. Outras retomam medidas que haviam sido anteriormente flexibilizadas, diante do aumento de casos confirmados e da lotação nas unidades de terapia intensiva nas redes pública e privada.

Assim, deve-se atentar que a medidas de isolamento social permanecem inalteradas em boa parcela dos municípios brasileiros. Em alguns casos, foram intensificadas, com o fechamento de muitos estabelecimentos comerciais e a determinação de que apenas atividades essenciais que continuam com suas atividades sem qualquer interrupção.
 
As circunstâncias excepcionais também devem levar a outras consequências. Com efeito, a mera prorrogação não faz com que as dificuldades mencionadas pela própria Receita Federal do Brasil como fundamento da edição da IN desapareçam. Nesse sentido, defende-se que os julgadores relativizem a aplicação da Súmula 69 do Conselho nos casos em que o contribuinte se viu impossibilitado de entregar sua declaração e ajuste.
 
A Súmula 69 determina que “a falta de apresentação da declaração de rendimentos ou a sua apresentação fora do prazo fixado sujeitará a pessoa física à multa de um por cento ao mês ou fração, limitada a vinte por cento, sobre o Imposto de Renda devido, ainda que integralmente pago, respeitado o valor mínimo.”.
 
Somada à Súmula 69, também a Súmula 49 determina que não se aplica as disposições da denúncia espontânea para os casos de declaração fora do prazo. Tudo isso se concretiza numa jurisprudência pacífica e consolidada que a multa é devida sempre que o contribuinte apresentar sua declaração de ajuste fora do prazo. No entanto, esse entendimento – ainda que se possa discordar dele – tem aplicação em tempos de normalidade social e econômica. Mas, por dever de coerência, não deve ser mantido em tempos de pandemia e isolamento social.
 

Como afirma Fernando Atria, “sob condições normais a regra deve ser seguida se o indivíduo agir de acordo com o que a regra determina, isto é, se ela fizer o que a regra determinar que seja feito sem considerações sobre o mérito do caso. No entanto, quando o caso está fora da normalidade, a regra não é necessariamente aplicável: uma exceção implícita pode existir.”[1]
 

Defende-se, portanto, que a excepcionalidade da situação atual – em outras palavras, a completa ausência de normalidade – justifica que seja relativizada a aplicação da Súmula 69 do CARF nos casos de entrega de declaração de ajuste a destempo.
 
E isso por três razões principais.
 
Em primeiro lugar, porque a crise sanitária que justificou a prorrogação ainda não se encerrou, e os fundamentos fáticos que ensejaram a edição da norma que prorrogou o prazo permanecem em grande medida inalterados. Em alguns casos, se intensificaram, com medidas de isolamento ainda mais drásticas, que impedem ou dificultam os procedimentos dos contribuintes na busca de seus informes de rendimentos. Ainda, alguns contribuintes – geralmente os mais necessitados e com menos acesso a informações – procurarão os postos de atendimento da Receita Federal, comprometendo as regras de isolamento e distanciamento. Quer isso dizer que, mantendo-se as circunstâncias que ensejaram a edição de ato normativo original, a presunção de aplicação inflexível da Súmula 69 para as declarações deste ano pode levar ao aumento do risco social e sanitário.
 
Em segundo lugar, pois o caráter pedagógico da Súmula 69 não será afetado. A aplicação da multa prevista tem, como regra geral, a finalidade de incentivar o cumprimento do prazo pelos contribuintes. Sendo assim, em períodos de normalidade, a aplicação da multa encontra guarida na finalidade de premiar os contribuintes diligentes e punir aqueles que não cumprem suas obrigações nos prazos legais.[2]
 
Em períodos excepcionais, no entanto, a indução do comportamento por meio de sanções (premiais) fica severamente comprometido. A conduta do agente não levará apenas as sanções previstas na legislação tributária, mas também todos os riscos sociais e sanitários envolvidos, de forma que esta troca entre cumprimento da regra com o prazo e a aplicação da sanção não se encontra mais equilibrada. Diante de um conflito que enseja riscos à própria integridade física, a finalidade premial da multa perde qualquer sentido pedagógico.
 

Em terceiro lugar, pela inexistência de prejuízo permanente ao Fisco. Com efeito, com a redução do contágio e a volta da normalidade social, muitos contribuintes poderão realizar a declaração e o pagamento integral do tributo devido, ainda que com atraso, sem qualquer prejuízo para o erário e para a fiscalização. Nesse sentido, em virtude da excepcionalidade da situação, deve-se atentar para o fato com como um imperativo da máxima de que somente deve haver aplicação de penalidades quando se verificar verdadeiro prejuízo a uma das partes.

A excepcionalidade da crise pela qual o país atravessa deve nos levar à conclusão óbvia e inatacável que as formalidades não podem ser um fim em si mesmas.
 
Não havendo qualquer prejuízo ao erário, não existem razões para que o descumprimento justificado pela excepcionalidade social a que todos estamos submetidos seja punida como se estivéssemos vivendo tempos de normalidade.
 
Um dos precedentes referidos para a edição da súmula 69 determina que “o instituto da denúncia espontânea, previsto no artigo 138 do CTN, não se aplica a descumprimento de obrigação acessória, como no caso de entrega a destempo de declaração de ajuste anual da pessoa física.”
 
Quer isso dizer que, na visão do CARF, a mera entrega com atraso da declaração de ajuste representa um prejuízo. Presume-se o prejuízo, de forma absoluta, ainda que o contribuinte atue para formalizar a entrega e ainda que desse atraso não decorre qualquer prejuízo ao Fisco, à fiscalização ou mesmo ao Erário.
 
Em termos singelos: é a violação de dever formal sem vítimas e sem qualquer prejuízo. É a vitória, por meio da sanção, do prazo sobre o pagamento substancial.
 
Ainda que se possa discordar da Súmula 69 – o que é o meu caso –, compreende-se a sua aplicabilidade em tempos de normalidade. Manter-se a sua aplicação inflexível nas declarações de ajuste deste ano para ser uma rendição à forma sobre qualquer tipo de consideração material que leva em conta, inclusive, a vida e a saúde dos contribuintes.
 
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[1] ATRIA, Fernando. On Law and Reasoning. Oxford: Hart, 2002, p. 136.
 
[2] BOBBIO, Norberto. Dalla struttura alla funzione, Nuovi studi di teoria del diritto. Roma: Laterza, 2007, p. 16.
 

Fonte: Jota

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