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Se vai reformar, fique atento ao projeto!

Uma análise sobre a PEC 32/2020
 
A Constituição Federal, assim como o apartamento do seu vizinho, já passou por um número considerável de reformas desde sua promulgação em 1988.  Na data em que este artigo foi escrito, 109 emendas já haviam sido feitas a nossa Carta Magna, sendo a última delas a denominada “PEC Emergencial”, que criou gatilhos com restrições para contratação e reajuste de salários de servidores públicos.
 
Muitas dessas emendas são incontestavelmente meritórias e contribuem para o aperfeiçoamento de nossa democracia, como a penúltima das emendas constitucionais (EC 108), que tornou o Fundeb uma política permanente. Ainda que imperfeita, em nosso entendimento a Constituição de 1988 tem muito mais qualidades do que defeitos. Fruto de um processo longo de discussão e negociação, a Constituição Cidadã, rompendo com um extenso período de autoritarismo no país, deu grande destaque a valores como o exercício da democracia, os direitos individuais, a inclusão social e o republicanismo.

Pouquíssimos servidores diriam que as regras que regem a administração pública não poderiam ser ao menos aprimoradas. O serviço público brasileiro também apresenta falhas e aqueles que dedicam sua jornada de trabalho à coisa pública desejam fazer parte da construção de um país melhor. Ocorre que, como um arquiteto mal recomendado, a Reforma Administrativa em discussão no Congresso Nacional promete resultados que não é capaz de entregar.
 
Dando seguimento a uma agenda fiscalista que nos foi imposta há alguns anos, a reforma administrativa é vendida sob o slogan de “economizar com a máquina pública”. Políticos da base governista e veículos de imprensa simpáticos à proposta defendem uma mudança nas regras do serviço público para acabar com supostos privilégios e reduzir os gastos com o funcionalismo, que seriam elevados em comparações internacionais. Na caricatura desenhada por quem tem ojeriza ao servidor, os funcionários do Estado ganham salários altíssimos, muitas vezes superiores ao teto do Supremo Tribunal Federal (STF), tiram meses de férias e recessos, acumulam incontáveis benefícios e trabalham menos do que deveriam.
 
Especialistas e associações de servidores já publicaram inúmeras análises[1] e dados para esclarecer o amontoado de equívocos e distorções nesse discurso contrário ao funcionalismo, que infelizmente contaminou a proposta de reforma administrativa. Com vistas a modificar o art. 37 da CF/88, o texto em análise propõe, por exemplo, vedar a concessão de férias em período superior a 30 dias e a aposentadoria compulsória como modalidade de punição.

Não obstante, apesar de parecer corrigir situações que denotariam privilégios em relação à condição geral dos trabalhadores privados, a PEC 32 é como um tiro de festim, posto que não tem competência para resolver determinados problemas e que ignora situações específicas da Administração Pública.

A malfadada “aposentadoria compulsória” é uma consequência da vitaliciedade e é restrita a carreiras como juízes e membros do Ministério Público, que não estão incluídos na atual reforma. Da mesma forma, ainda que diferentes regras possam existir em cada ente da federação, as férias de 30 dias já são aplicáveis à maior parte das carreiras públicas, como previsto na Lei 8.112/90 para o Executivo Federal. As principais exceções são categorias como a de professor – que seguem de certa forma o calendário escolar e que no geral não podem ser acusadas de privilégios salariais –, bem como ocupações específicas que trabalham em situação de periculosidade. Nesse caminho, constitucionalizando diversas questões pouco efetivas ou incompreendidas, a reforma administrativa vai elegendo “espantalhos”, que distraem em relação àquilo de pior que ela tem.
 
A principal e mais polêmica inovação da PEC 32 é a extinção do regime jurídico único, com o fim da estabilidade para alguns cargos no serviço público. No novo arranjo da reforma administrativa, a estabilidade ficaria restrita aos “cargos típicos de Estado”, que conviveriam na máquina pública com regimes de vínculo temporário, de experiência, de prazo indeterminado, além de substituir os atuais cargos em comissão por cargos de “liderança e assessoramento”.  O fim da estabilidade em alguns casos se justificaria mais uma vez pelo discurso caricatural do servidor público, que se acomodaria em seu cargo após o estágio probatório e não prestaria seus serviços à população de forma eficiente.
 
Cumpre esclarecer, primeiramente, que a estabilidade no serviço público é diferente da vitaliciedade característica de alguns membros de poder (juízes e promotores). A estabilidade não impede o desligamento de servidores que não cumpram com seus deveres, mas apenas garante que ela não seja arbitrária, condicionando-a a processos judiciais, administrativos ou à avaliação periódica de desempenho, essa última até hoje ignorada pelo Congresso Nacional. Os próprios servidores têm todo interesse que a função pública seja bem desempenhada por todos, uma vez que o trabalhador pouco diligente costuma deixar atribuições acumuladas para aqueles que desempenham sua função com dedicação. O fim da estabilidade para grande parte das carreiras públicas, no entanto, tem potencial para trazer muito mais danos do que benefícios.
 
A carreira de Analista de Comércio Exterior (ACE), a qual representamos, é parte do Ciclo de Gestão do Poder Executivo Federal e tem como responsabilidade a formulação, execução e acompanhamento das políticas de comércio internacional e de elevação da produtividade do país. Entre diversas atividades, os analistas emitem pareceres para alteração de alíquotas de imposto de importação, aplicação de medidas de defesa comercial e aprovação de planos produtivos na Zona Franca de Manaus, alguns deles com poder vinculativo. Tais exemplos referem-se a temas que envolvem interesses com cifras expressivas, sujeitos à captura de poderosos grupos empresariais ou políticos.
 
Nesse sentido, a estabilidade existe não como uma proteção ao servidor, mas como uma garantia à sociedade, de que os agentes do Estado procederão conforme a lei e o interesse público, protegidos de pressões de toda sorte. Assim como os ACE, milhares de outros servidores lidam diariamente com temas sensíveis e, em período recente, não faltam exemplos daqueles que se insurgiram contra a ingerência indevida de atores políticos e privados, resguardados pela estabilidade que lhes é conferida constitucionalmente. Contudo, muitos deles serão excluídos do conceito de “cargo típico de Estado”, a ser definido em lei complementar de acordo com o lobby contrário ou a favor do momento, e terão uma preocupação a mais com qualquer ato, proposição, ou mesmo com o que ensinam em sala de aula.
 
Apesar dos riscos que suscita, a reforma administrativa não se presta aos objetivos de economia no setor público. A própria motivação da PEC, assinada pelo Ministro da Economia, é expressa no sentido de que ela não acarreta “impacto orçamentário-financeiro”. Pelo contrário, nota técnica da Consultoria do Senado[2] sugere que a reforma, nos termos em que é discutida, poderá ter impactos fiscais negativos em seus efeitos agregados, derivados da possibilidade de aumento da corrupção com a expansão das indicações políticas no serviço público. Tampouco se vislumbram no texto potencialidades para que as modificações melhorem a prestação de serviços públicos.
 
Junto com o fim da estabilidade, a PEC promove a ampliação das hipóteses de contratação temporária e permite que indicados políticos ocupem atribuições técnicas. A reforma complexifica muito mais a gestão de pessoal, com a convivência de empregados em múltiplos regimes jurídicos, reduz a possibilidade de acumulação de conhecimento pela experiência e torna uma proporção indefinida da Administração Pública permeável a interesses pouco republicanos.
 

Causa espanto que uma proposta com tantos custos e raros benefícios esteja entre as prioridades atuais do Congresso Nacional, no meio de uma grave crise econômica e sanitária. Talvez porque nossos políticos e formadores de opinião dedicam muito mais tempo a ouvir os sonhos vendidos pelos arquitetos da PEC 32 do que a analisar o texto apresentado. Uma reforma administrativa moderna poderia ser feita sem que se mexa na Constituição, com a regulamentação de dispositivos já existentes e com a criação de mecanismos de incentivos ao melhor desempenho dos servidores. Já uma reforma implementada a partir de um projeto mal desenhado levará ao chão pilares sólidos erguidos em 1988, dando lugar a uma estrutura frágil e de menor utilidade ao país.

*Por:

GUILHERME SILVEIRA GUIMARÃES ROSA – Presidente da Associação dos Analistas de Comércio Exterior – AACE, mestre em Economia (PSE/Université Paris 1, Panthéon-Sorbonne), bacharel em Direito (UFMG) e em Administração Pública (Fundação João Pinheiro)


KLENIZE CHAGAS FÁVERO – Vice-Presidente da Associação dos Analistas de Comércio Exterior – AACE, mestre em Direito e Relações Internacionais (UFSC) e bacharel em Direito (UFSC)

DANIEL SANTOS – Diretor de Comunicação da Associação dos Analistas de Comércio Exterior – AACE, bacharel em Direito (UFRN)


Notas:

[1] Ver, por exemplo, “Cadernos da Reforma Administrativa” publicados pelo Fonacate. Disponíveis em: https://fonacate.org.br/noticia/politica/fonacate-lanca-cadernos-da-reforma-administrativa/
 

*A opinião contida neste artigo é a do autor e não necessariamente exprime o posicionamento da DS Curitiba.

Fonte: Jota

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